domingo, 16 de agosto de 2015

a relíquia do meu pai

há quase quarenta anos - trinta e sete, pra ser mais exata - meu pai comprou um carro. ou ganhou do meu avô, não sei direito. esse carro é um fusca branco. de 1978 até 2015, o tal do fusca esteve aqui conosco, quase como um membro da família. com esse carro, meus pais saíram de são paulo e foram até o nordeste. foram muitos dias dirigindo, foram muitos quilômetros percorridos. isso tudo sem sequer trocar um pneu, eles dizem.

quem olha de fora acha que o carro tá impecável, de tão bonitinho que ele é. quem tá do lado de dentro sabe que a coisa não é bem assim: o fusca treme, balança, faz barulhos assustadores, as peças soltam, a porta corre risco de abrir do nada, um dos vidros é fechado permanentemente... esse tipo de coisa ótima, que só sabe quem convive com o carro. aliás, outra coisa incrível que ninguém mais sabe sobre ele é que, como não é possível afastar/aproximar os bancos, minha mãe precisa usar um travesseiro nas costas pra conseguir dirigir. sem ele, ela não alcança os pedais. meu pai, aproveitando o gancho, usa também. no caso dele, mais por conforto do que pela distância, imagino eu.

desde que eu me entendo por mim, meus pais tiveram dois carros. o fusca sendo de papai, ficava com ele. mamãe só usava quando era mesmo necessário, mas o normal era que o outro carro "fosse dela". preciso confessar que eu e o fusca não tivemos uma relação muito amigável durante alguns anos. assim... quando eu era pequena, lembro de andar nele pouquíssimas vezes (ou vai ver que minha memória é mesmo muito ruim e eu simplesmente esqueci. muito capaz de isso ter acontecido, inclusive). como o fusca ficava com meu pai, que trabalhava super longe de casa, quem me levava de carro pros lugares era a minha mãe. e nos fins de semana, quando saíamos, o fusquinha também ficava na garagem. isso significa que eu não tinha uma relação muito próxima com ele. e significa também, que por um período da minha vida (talvez dos meus doze aos dezesseis anos, mais ou menos), eu morria de vergonha desse carro. mais pelo barulho absurdo que ele faz e pela tremedeira toda do que por qualquer outra coisa, já que o carro é super conservado do lado de fora e faz sucesso por onde quer que ele passe.

então eu cresci. cresci e passei a andar mais com ele, tornando nossa relação muito mais sólida. desde que eu entrei na faculdade, eu andava de fusca pelo menos uma vez na semana, quando meu pai me dava carona até lá. ficamos amigos, o fusca e eu. nossa relação só não se estreitou mais porque dirigi-lo era difícil demais pra mim, então evitei essa parte. mas meu namorado, diferentemente de mim, fez questão de pegar o volante desse carro sempre que possível - a dificuldade começa já na hora de dar partida no fusca, porque não é sempre que a coisa funciona de primeira. e trocar de marcha enquanto se está dirigindo é toda uma emoção à parte, garanto.

como eu já disse, o carro tá lindo do lado de fora. isso fez com que, ao longo desses anos todos, meu pai recebesse uma infinidade de propostas. muita gente já quis comprá-lo, muita gente já ofereceu bem mais do que ele vale. mas papai sempre dizia que "não, muito obrigado" e batia o pé, insistindo que, assim que houvesse condição, reformaria o carro inteirinho. deixaria o fusca novo em folha, do jeito que ele merece.

mas a vida não é justa, como a gente percebe diversas vezes ao longo do dia. sendo assim, meu pai nunca teve a chance de fazer tudo o que ele tanto sonhava com o carro. meu pai, que nunca cogitou se desfazer do seu carrinho, hoje tá sem ele. e não foi por escolha própria, muito pelo contrário. meu pai, que sequer estacionava o fusca na rua pra não correr riscos, teve o carro roubado. depois de quase quarenta anos de amizade entre máquina e ser humano, alguém muito mal intencionado simplesmente levou embora o carro do meu pai. aquele que ele cuidava da melhor maneira possível e defendia sempre que eu ou minha mãe insistíamos em falar mal. repetindo: a vida não é justa.

foi um choque pra todo mundo. por mais que eu já tenha vivido meus momentos de renegar o fusca, eu nunca imaginei minha família sem ele. por mais que mamãe sofresse nos dias em que precisava dirigir esse carro (só quem já fez isso sabe o esforço tremendo pra conseguir fazer uma curva), ela nunca quis que ele fosse embora assim, sem mais nem menos. a gente passou a aceitar a presença daquele carrinho véio na nossa família e, por incrível que pareça, passou a gostar dele do jeitinho que ele era. barulhento, chamativo e teimoso. teimoso sim, porque só saía do lugar se quisesse.

quantas vezes meu pai já não ligou pra casa de noite pra avisar minha mãe que "oi, tô parado no acostamento esperando o guincho. o fusca resolveu que por hoje não quer mais"? inúmeras, eu diria. o carro inundava quando chovia muito, o carro congelava nos dias de frio, o carro fervia nos dias de calor. o rádio não funcionava mais, a buzina menos ainda. o volante já soltou e quem consertou foi meu pai mesmo (gambiarra é o forte de papai, não sei se vocês sabem). certa vez, mami e eu tivemos inclusive que largar o fusca no meio da rua e sair correndo, porque ele resolveu que começaria a pegar fogo e soltar muita fumaça sem nenhum aviso prévio. tô rindo muito de lembrar, mas juro que no dia meu coração quase parou de tanto susto. eita carro bom pra dar susto na gente!

já roubaram esse fusca uma vez, há muitos anos. depois de uma semana sumido, meu pai conseguiu recuperá-lo. hoje os tempos são outros, a rapidez da malandragem é muito maior, a dificuldade de reaver o carro é muito maior. mas pra quem já voltou uma vez, por que não duas? ei, fusca bala, volta pra casa! meu pai tá te esperando. e eu também, juro.


(foto meramente ilustrativa. imaginem que o carro da imagem seja branco, por favor.)


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